quarta-feira, 22 de maio de 2013

Receita de família

Acredito que a família seja a base de tudo. Seu significado nos remete a tudo o que somos e aos valores que apreendemos desde que nascemos.
Nem toda família é igual, e a maioria delas não se parece em nada com aqueles comerciais de margarina, onde todos sorriem felizes e bem-humorados no café da manhã. Mesmo diferentes, uma coisa a maioria delas têm em comum: o amor incondicional uns pelos outros, que se traduz em forma de amparo e aceitação às diferenças. Sim, porque mesmo em família, as diferenças existem, sejam de temperamento, de opiniões ou preferências.
Embora, tenha passado por diversas mudanças através dos tempos, a família continua sendo o tema principal de livros, filmes, e novelas. O que serve de inspiração não é simplesmente a família em sí, mas os sentimentos humanos vivenciados dentro do círculo familiar. 
 
Família pode ser drama, ou mesmo comédia, pode exibir doses de sacrifício, de amor incondicional, de apego, ciúme, intriga, e tantos quantos forem os sentimentos humanos.
Diz-se que cada um tem a família que merece, eu até concordo com isso, mas uma coisa é certa: nenhuma família é melhor do que a nossa, e mesmo que sejamos diferentes em alguns aspectos, no íntimo temos muito em comum com ela. Por ser a nossa referência, ela também é o nosso "porto seguro", aquele lugar para onde sabemos que poderemos sempre voltar...
 
Se no amor não existe receitas, na família também não, mas se existisse seria mais ou menos assim:

 "Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema...
...Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível.  Às vezes, dá até vontade de desistir...
...Mas a vida... sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o  apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.
Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é  o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele, o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente...
...Já estão aí? Todos? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.
Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco.
Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa.
Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional.
Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte.
Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à Rossini, Família à Belle Manière; Família ao Molho Pardo (em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria). Família é afinidade, é à Moda da Casa. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.

Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança.
O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro.
Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete."

Trechos do livro "O arroz de palma" de Francisco Azevedo.

  
 
 

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